domingo, 17 de setembro de 2017

Sentir falta (texto de Ana Coutinho)

SENTIR FALTA [Ana Coutinho]
Sentir falta, ao contrário do que dizem por aí, é diferente, muitíssimo diferente, de sentir saudades. Ah, sentir saudades... Sentir saudades é grandioso. Dor enorme que rasga por dentro dias seguidos, horas intermináveis, tempo infinito.
Sentir falta não. Sentir falta é pontual. Sentir falta é dor fina, dor de beliscão com unha, dor de anestesia de dentista. Sentir falta é mais específico. Sente-se falta do carinho antes de dormir, da implicância com o controle remoto, sente-se falta do jeito boboca que ele tinha de andar, se balançando todo. Sentir falta é mais egoísta, quase que material. Sentir falta do café dele, da bagunça dele, dos discos dele, do chinelo dele, sempre ali, jogado displicentemente na beira da cama. Sentir falta da camiseta velha dele que você podia usar... Ai, que falta faz essa camiseta... Sentir falta é pequeno, mas não menos doloroso. 
Ou não dói uma unha encravada? Ou não dói um bife que a manicure tira? Ah, dói... e como. Talvez até mais que a dor da saudade. 
A dor da saudade é grande. É infecção generalizada. É uma gripe daquelas, uma dengue hemorrágica, uma pneumonia. A saudade não te deixa respirar. Não te permite trabalhar, te faz faltar o ar. É dor das grandes que te derruba de tal forma que, de repente, por mais que esteja sol, faz um frio de rachar na sua casa e você pode jurar que nunca - nunca - sairá de novo de dentro do seu edredon, porque suas forças acabaram ali, naquele instante, e não há mais nenhum fiapo de vontade, sequer para amarar um tênis. Isso é saudade. 
Saudade não é sempre de uma coisa específica. Pode até ser, mas normalmente saudade é plural. Saudades é dos dois. Saudades é de você mesma, com os olhos brilhando. Saudades do frio na barriga, saudades do começo, saudades da praia, saudades daquela festa ridícula, saudades dos foras que vocês davam juntos, dos preparativos para aquela viagem, saudades daquela viagem e da alegria de estar lá. Da expectativa de ir pra lá, da ansiedade, da enorme felicidade e graça, que só vocês conheceram...
Saudades de coisas efêmeras, saudades de fumaça que não se pega, não se toca e, talvez, nem tenha acontecido de fato. 
Por isso, saudade pode ser inventada - falta não. Saudade é contínua, falta é curta. Saudade é pó, falta é pedra. Saudade é soco no estômago, falta é puxão de cabelo.
Falta é daquilo que não está ali, e que deveria estar. É a dor da cozinha intocada, da luz apagada, do controle remoto só seu. A falta está na rotina, nas pequenas coisas concretas do dia a dia. Ela é pontual, mas pode aparecer todos os dias. E todos os dias você sentirá a dor fina da picada de uma abelha quando notar, por exemplo, que o banheiro está arrumadíssimo e a pia ficou grande para os seus poucos perfumes. Lá está a dor da falta vindo de repente, tal qual um ladrão que te furta a bolsa... Ela vem e, como uma unha encravada, não te impede de trabalhar, de viver, até de se divertir. Mas avisa que está lá, latejando dentro do sapato bonito.
Você pode até ter se curado das saudades, mas, talvez, um dia, quando o chuveiro queimar, você vai sentir uma falta enorme dele, e de todas as soluções simples que ele tinha para problemas tão complexos como esse...
Talvez uma se cure antes da outra, talvez nenhuma das duas tenha cura. Ambas, no entanto, te trazem a sensação da angústia. Ambas acontecem apenas quando o objeto da saudade ou da falta, parece estar ali, na beirada da sua vida. Ambas te fazem esticar o braço com força, com toda a sua força, o máximo que pode, para alcançar aquilo que já não está mais ali, que é sombra, é marca d'água de powerpoint, e é por isso que dói.
Talvez essas duas dores só sumam de fato quando ele sair da beirada. Quando o desenho do rosto dele não for mais tão nítido na sua memória, quando o som da voz dele não for mais tão claro em teus ouvidos. A saudade e a falta, de formas diferentes, com dores distintas, clamam por aquilo que mais se teme. A única solução possível é a mais temida, e serve para as duas: o esquecimento.

(Ps, eu, Iole, sinto tantas faltas e tantas saudades que afogo-me em melancolias)

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